Filme se propõe a cumprir o papel didático nas acaloradas discussões sobre opressão
Por Yuri Hollanda
A discussão sobre gênero e racismo chegou com força nos roteiros capitalistas produzidos em Hollywood. Filmes com a proposta de debater os assuntos não param de ser lançados todo ano, recebendo, por um lado, muito dinheiro, elogios, indicações e prêmios, mas por outro, muitas críticas, xingamentos e ânimos exaltados. Se a intenção das obras é essa, nunca teremos certeza, mas elas agradam os estúdios de cinema, que continuam a investir mais e mais na temática.
Este ano, uma das grandes expectativas para os que acompanham o gênero é ‘Hidden Figures’ (no Brasil, fazendo parte da enorme lista de filmes que receberam uma tradução infame, ‘Estrelas Além do Tempo’), com três atrizes que trazem em sua carreira uma ampla bagagem nas mesmas discussões que o longa trás: Taraji P. Hensom, atual estrela da série-hit ‘Empire’, que protagonizou um dos melhores momentos no Globo de Ouro 2016, distribuindo ‘cookies’ para os artistas brancos que compareceram a premiação (e vencendo o prêmio de Melhor Atriz em Série Drama, por seu papel em ‘Empire’), Janelle Monae, que se consagrou inicialmente como cantora, dando sempre declarações de luta pela comunidade negra e pelas mulheres, e a já icônica Octavia Spencer, que participa dessas discussões mais ativamente desde seu papel como Minny Jackson, em ‘The Help’, vencendo o Oscar 2012 de Melhor Atriz Coadjuvante, fazendo parte do, infelizmente, pequeno grupo de atrizes negras que levaram pra casa o prêmio mais importante da sétima arte.
Com esse elenco protagonista de peso, ‘Hidden Figures’ mostra a história nunca contada das três geniais mulheres negras que trabalharam para a NASA durante uma das maiores missões espaciais do governo dos Estados Unidos, quando conseguiram lançar o astronauta John Glenn para a órbita da Terra e seu retorno em segurança. O que o mundo não sabia é que a grande responsável pelo feito, que concorreu com a Rússia (quando o país lançou Yuri Gagarin para a órbita da Terra, antes mesmo dos Estados Unidos), foi Katherine Johnson (interpretada por Taraji), a primeira matemática negra a fazer parte do departamento mais alto da NASA, antes composto somente por homens brancos e uma mulher branca (que trabalhava como secretária). Enquanto isso, em outros departamentos, acompanhamos a história das outras duas estrelas de ‘Hidden Figures’: Mary Jackson (interpretada por Janelle), que foi a primeira mulher negra a ser aprovada no curso de graduação em Engenharia de Maryland (EUA), antes restrito judicialmente a homens brancos, mais tarde conseguindo o cargo de Engenheira na NASA, e Dorothy Vaughan (interpretada por Octavia), que foi uma das programadoras do primeiro computador não-humano, se tornando, mais tarde, chefe do setor de Programação da NASA.
Embora sejam mentes e pessoas excepcionais, as três juntas enfrentam as mais bárbaras manifestações de racismo e machismo para conseguir o mínimo: reconhecimento por suas mentes brilhantes, este roubado por homens brancos, simplesmente por serem homens brancos (sistema que ainda hoje funciona no ramo profissional). Obviamente, mesmo depois de promovidas, ainda sofreram subestimação, assédio e opressão dos seus colegas de trabalho, mas antes dos títulos mais importantes, não só elas, mas um departamento inteiro de mulheres negras, passavam por perrengues maiores. O filme mostra a segregação extrema entre brancos e negros que a NASA mantinha antes de Katherine, Mary e Dorothy levarem consigo o reconhecimento que muitas mulheres negras, que já trabalhavam na NASA, mereciam. O Departamento Oeste, mostrado muitas vezes no filme, abrigava somente matemáticas negras e ficava localizado há 800 metros do prédio principal da NASA. Ele existia porque era o único lugar onde negros podiam usar o banheiro ou conseguir qualquer vaga que seja na NASA, sendo ou não melhores do que os engenheiros do alto escalão.
Uma das principais sequências dramáticas do filme mostra Katherine, mesmo depois de promovida ao mais alto departamento da NASA, tendo de atravessar 16.000 metros todos os dias para usar o banheiro separado para negros e voltar ao seu lugar, percurso que levava 40 minutos, levando-a a exaustão por ser milhões de vezes mais exigida: além de servir como computador-humano, ela foi obrigada a usar uma garrafa térmica separada dos demais para tomar café, após receber grotescos olhares ao pegar uma xícara de café da garrafa térmica usada por todo o departamento. Também foi obrigada a calcular e ler números com mais de 50% do relatório apagado, e a saber lidar com decisões tomadas de última hora em reuniões que ela não tinha permissão de participar e saber o que foi discutido com antecedência.
Embora o longa trate da forma mais leve possível as opressões sofridas por essas funcionárias da NASA, qualquer telespectador que tenha o mínimo de empatia irá se sentir, no mínimo, incomodado. E arrisco dizer que mesmo os mais racistas e machistas irão sair da sessão com pensamentos mais evoluídos, já que a proposta do filme é exatamente trazer os quadros mais simplórios e grotescos dessas opressões para fazer os mais opressores refletirem sobre suas ações. Os problemas talvez apareçam pelo filme ser de época e as manifestações racistas e machistas de hoje já não serem as mesmas de antes, e isso ser usado como justificativa para dizer que o ‘mundo mudou, já não existe preconceito’. Ou, talvez, muitos encontrem problemas no personagem branco que leva crédito pelas conquistas dos negros, como é o caso do chefe do departamento de Katherine, que não faz muito mais que sua obrigação ao tomar certas medidas (deixo o mistério para quem for ver o filme!), mas que pode acabar saindo como herói pela leitura de algumas pessoas.
Satisfatório, ‘Hidden Figures’ marca seu lugar como um bom filme que trás reflexões sobre como opressões se modificam para se encaixarem no seu momento atual. Com grandes frases e atuações belíssimas, ele deixa implícito que a luta de mulheres negras no mercado profissional é diária, intensa e contínua e seus inimigos estão bem definidos, basta saber quem são. Mas o mais interessante (já que não sei declarar se isso é bom ou ruim), é que Taraji, Octavia e Janelle, por serem mulheres negras na industria cinematográfica, além de se identificarem com suas personagens, trazem nas costas lutas parecidas com as de Katherine, Dorothy e Mary: a de existirem e resistirem num mundo dominado por homens brancos.